FOZ-DO-DOURO
O CAMPO DO POSSÍVEL
A casa
é branca, branca sobre o mar. Por dentro, o branco sobe os degraus,
entra nas salas, invade os quartos, só para no terraço.
Tudo é branco na casa, até mesmo o silêncio. O homem
que vive nela tem o coração vulneravel: é do sul,
andou por terras de luz leve onde o próprio chão era caiado.
Em frente, a separar a casa das vagas ou do lento marulho das águas
da barra, há um paredão comprido sobre os rochedos, uma
avenida de palmeiras quase interminável, gaivotas de convívio
fácil, amadores de pesca infinitamente pacientes, alguns sentados
em cadeiras de lona, a cana sofisticadamente apoiada num tripé,
o cigarro pendurad no beiço, faltando-lhes apenas, para a tarde
ser perfeita, um copinho de uisque ao lado e que a tainha morda a isca.
Ao amanhecer, tudo às portas do mar, cabedelo, paredão,
avenida, está limpo e brilha, porque choveu. As palmeiras altíssimas,
a essa luz primeira, parecem ainda mais altas. Há no ar um aroma
de primavera próxima – o Jardim do Passeio Alegre está
ao lado: goivos, lírios, rosas, tudo já abriu. E lá
mais para diante há uma cebe de espinheiros quase rente ao chão:
as suas flores minúsculas trazem-me a fragância terrestre
da infância e a prosa quase insuportavel, de tão sumptuosa,
de Marcel Proust. No sentido contrário, logo após o farol
de S.Miguel-o-Anjo há uma espécie de cais onde se amotoam
barracas de madeira, pequenas embarcações de pesca pintadas
de cores berrantes, azuis, vermelhos, amarelos, e roupa a secar em arames.
Um dos botes tem o nome do lugar – Cantareira. Os outros têm
nomes vulgares: Nemquechova, Basófias, Marina
e Popeye. Do sítio, ele nasceu por alí, fala Raul
Brandão. O nosso homem também fala do mar e dos pescadores
da costa como mais ninguém. “Tudo aqui é pobre e humilde
mas não grosseiro.” São palavras dele, húmidas
de ternura por esta gente ou outra semelhante, porque nem só para
a incomparável luz do cabedelo teve os olhos e o coração
abertos.
Talvez tais palavras pudessem ainda dizer-se de algumas almas que por
aqui esgadanham a vida; mas nada têm de comum com esses outros que,
nas tarde e noites de sábado e domingo se juntam à beira-mar
atravancando o mundo com carros e carripanas, de onde alguns nem chegam
a sair, o focinho enfiado no jornal, as orelhas despertas para os guinchos
e grunhidos do rádio, ou para os relatos de futebol – gente
sem nenhum sol dentro dela, deixando atraz si, quando abandonam o terreno,
um rasto de garrafas e copos de plástico, toda a sorte de papeis
sujos, latas de sumos e cerveja, camísas de vénus, cascas
de frutas e restos de sanduiches, quase tudo fornecido por quem, em roulottes
transformadas em snack-bares instaladas ao fim-de-semana na avenida, assim
puxa pela vida, que não é fácil, não senhor,
nem digna como todos sabem, embora alguns o saibam melhor que outros.
Contudo, apesar do lixo, a manhã desperta entre as palmeiras, sacode
as crinas e não tarda a transformar a terra num mar de cintilações.
Começa então a surgir outra gente, essa sim, iluminada por
um pequeno sol interior. Rapazes, mais raramente alguma rapariga, aos
pares ou em pequenos grupos, em fatos leves, camisola e calção,
correm na manhã, numa cadência de relógio. Têm
um ar lavado e uma beleza terrestre, simples, palpável, diante
do mar. Às vezes fazem exercícios corporais junto às
árvores, depois recomeçam a corrida, sonhando com triumfos
não sei em que maratonas. São criaturas da minha simpatia,
de costas para a febril respiração da cidade, que me trazem
ao espírito outros rapazes coroados pelo esplendor da própria
juventude, atletas que os esculptores gregos levaram para os mármores
de Poros, ou Píndaro imortalizou nas suas odes triumfais, cuja
música, no declínio da tarde, escutamos ainda comovidos:
Não creias, alma querida, na vida eterna:
Mas esgota o campo do possível.

Eugénio de Andrade
Foz-do-Douro, Maio de 1994.
A casa de Eugénio
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