Entrevista com Agustina Bessa-Luís

por Elisabete França
© 1999 Diário de Notícias

 
Kvintessensen
Forlaget Ørby
ISBN: 87-89797-27-4
Antal sider: 371

À descoberta do Oriente
Na sua casa do Porto, a escritora fala do último romance. Mais uma narrativa torrencial, em cenários de Macau e da China

«A Quinta Essência», é um título enigmático para um livro cujo protagonista tem como prazer intelectual supremo decifrar enigmas. Que se lhe deparam, abundantes, no Oriente.

De onde lhe vem o fascínio pelo Oriente, Macau, a China, patente em A Quinta Essência? Já numa crónica de 1970 referia Lao Tsé...

Ah! isso é de leitura muito antiga. Lao Tsé e autores que me acompanharam com muita regularidade. Mas não é um fascínio.

Então o que é?

Quando se trata de trabalho, é um imperativo. Há dez anos, fui a Macau e à China, com outros escritores, a convite da Fundação Oriente, supondo uma espécie de contributo nosso, depois, a escrever sobre a viagem. Eu escrevi só uma pequena coisa, na altura não encontrei o que me interessasse. Passaram dez anos, fui outra vez a Macau" muito bem acompanhada, e despertaram-me para histórias que não são as mais patentes. Vim ainda sem ideia de escrever. Comecei a juntar coisas: há muita tradução francesa de livros sobre a China. Depois, trabalhava na minha imaginação o facto de ser o último ano antes da transição de Macau para a China e senti que, se não era agora, perdia-se uma estabilidade inspiradora.

Então apareceu-lhe José Carlos, o protagonista do romance?

É uma dessas minhas personagens oriundas das famílias do Porto, de um determinado modelo de cultura, de tradições e de snobismo, hoje mais diluídos.

Veículo para a aventura oriental?

Sim. Ele e o Pessanha, com a suspeita de um elo, de que o próprio Camilo Pessanha ainda poderia ser da sua família.
Chegado a Macau, José Carlos quer afastar-se o mais possível dessa associação, a ponto de usar outro apelido, Pastor...
Queria afastar-se porque a figura do Pessanha o inquietava.

Sobre Pessanha, escreveu: «Em nenhum outro lugar do mundo um português podia ser tão europeu, excêntrico desavergonhado e respeitável até aos ossos.» A sinalizar também Macau como lugar de paradoxos extremos?

Sim, sem dúvida. Uma sociedade do tráfico, do negócio, da revolução, de várias forças cruzadas.
José Carlos diz que vai para lá ganhar dinheiro, mas tem é uma intenção de vingança, de seduzir e abandonar a filha do capitão que autorizou a ocupação da casa da sua família, durante o PREC.
Sim, mas ele é um homem da filosofia, um homem de cultura e, quando encontra o motivo da vingança, procura que esse motivo amadureça. Enquanto espera que a rapariga cresça e se torne uma mulher, ele vai-se transformando e acaba por amá-la.

Transforma-se à medida que se impregna de cultura oriental?

Sem dúvida. Ele já era um especialista de filosofia oriental. Começa a conviver com orientais, sobretudo com a avó da rapariga, siara Debra, a grande figura. Depois já não é um europeu, no sentido em que as suas próprias convicções já não funcionam ali.

As mulheres a quem José Carlos se liga, Iluminada, a avó, a mãe, são como uma porta que se lhe abre para a China?

Sim. Vai ter uma experiência que tem muito a ver com o comportamento chinês. Ele e Iluminada vão para a casa da avó dela, em Pequim, viver a sua paixão e faze-la esgotar, para depois serem cumpridas as obrigações e o ritual de casamento combinado pela família. Isso é muito chinês.
Ela parte, como previsto, ele fica e aparece-lhe uma doença estranhíssima. Que doença é aquela?
É a doença que na Europa se diz psicossomática. Vem-lhe da incapacidade de resolver os seus problemas. Na medida em que os vai contornando, a doença acaba por desaparecer. As culturas diferem, a natureza humana não.

No processo de impregnação de cultura oriental de José Carlos, a figura do jesuíta do século XVI/ /XVII, Matteo Ricci, atrai-o particularmente. Porquê?

Porque era uma figura extremamente digna e moral e com necessidade de encontrar uma solução para a divergência cultural. Chega a um ponto em que essa solução se apresenta como uma forma de ecumenismo, com o budismo e o cristianismo lado a lado. Eu tenho uma grande admiração pelo Matteo Ricci e tenho a certeza de que os chineses da época também tiveram por ele uma admiração que nunca os portugueses tiveram. Os jesuítas italianos não estavam nas boas graças dos portugueses.

Porquê?

Porque os jesuítas portugueses entendiam que eles abriam as portas ao negócio. Todos os barcos eram capitaneados moralmente pelos jesuítas, figuras respeitadas e de grande influência. Depois, à volta da possibilidade de introduzirem a religião, tinham um interesse paralelo no negócio. Em Macau existia muito negócio, de prata e outras coisas.

Outra fonte de sedução para José Carlos é aquele romance do século XVIII, O Sonho do Pavilhão Vermelho, de Cao Xueqin, uma espécie de Mil e Uma Noites...

Supõe-se que ele leu As Mil e Uma Noites, termina cada capítulo da mesma maneira.

Com o seu caudal de histórias e personagens, esse é um dos pontos de partida para o charadismo que José Carlos e Iluminada cultivam e que os liga.

À volta desses enigmas, a aliança na decifração torna mais sólidos os seus sentimentos do que uma simples atracção amorosa.

É isso que pode aproximar-se da quinta-essência?

Sim, pode aproximar-se da quinta-essência, enquanto descobre os novos caminhos entre o homem e a mulher.

Mas escreve que a quinta-essência é sobrenatural. Portanto, fica fora do alcance humano...

Chamamos sobrenatural àquilo que não podemos explicar. Não significa que daqui a uns milénios não seja explicável.

«Cultura é a reflexão para entendimento do Homem»
A escritora considera que, no Ocidente, a reflexão está demasiado circunscrita ao mundo científico

Apontou para um horizonte de milénios. Crê que então continuará a haver vida na Terra?

Acho que sim, basta sobrevoar as grandes florestas e outras vastas zonas da terra por habitar.

Os recursos naturais não são inesgotáveis, não é?

Mas serão substituídos, de formas ainda não imagináveis. Há sempre qualquer coisa de exaltante, que dá um novo elã ao homem.

A sabedoria pode não levar longe. José Carlos, de volta a Portugal, dedica-se à política, torna-se ministro, dando uma imagem medíocre, para não destoar...

Sim, tudo o que aprendeu é de mais para aplicar ao seu quotidiano. Senão, teria de ter a coragem de ser um solitário, praticamente sem lugar no mundo de hoje. Este é o tempo das grandes superfícies, cada vez mais habitadas, mais cheias.

Não acha que as pessoas estão, no fundo, muito solitárias nessas grandes superfícies habitadas?

As pessoas pedem atenção, amor, cada vez mais se diz que estão sozinhas, abandonadas, mas elas também não dão nada. Mas não era nesse sentido que eu falava de solidão, era no sentido da reflexão, que está praticamente circunscrita ao campo científico, para aplicação imediata, para criação de determinados produtos ou engenhos utilizáveis pelo homem, mas não é uma reflexão no sentido do entendimento do homem, que vai para além da lógica. Isso, no fundo, é que é a cultura, um conhecimento em que os orientais vão mais longe.

Porque termina o seu romance como se fosse um capítulo das Mil e Uma Noites ou do Sonho no Pavilhão Vermelho?

Por uma opção estética. Pareceu-me interessante e bonito.
Sente que o filão oriental ainda tem matéria para lhe alimentar mais ficção ou não?
Atrai-me tudo quanto se relaciona com a cultura oriental, o cerimonial, o rito. É um dos meus interesses de leitura, mas, de momento, na escrita não estou a pensar voltar.

Que lugar tem O Sonho no Pavilhão Vermelho entre esses interesses de leitura?

Considero Cao Xueqin um grande companheiro de jornada. Mas toda a China, desde o artesanato, é uma obra de arte consumada.

É uma cultura da subtileza?

De certa maneira, é.

Como perspectiva a transição de Macau para a China?

Não sei até que ponto vai perder influência, limitar-se a ser uma estância de repouso, para as classes com mais poder económico... Há que ter certa modéstia quanto a previsões. Li todo o documento que foi assinado, mas há o factor humano, sempre decisivo

«Quando não estou a escrever fico intratável»
Sentada à camilha, Agustina para de escrever, a azul, em folhas brancas A4. Para falar, também, do seu processo de escrita

Está a escrever algum livro?

Agora não. Estou só a escrever um conto, chamado Dominga, para uma antologia de contos da responsabilidade da Luísa Costa Gomes, que inclui dois portugueses entre vários autores estrangeiros.

Está quase sempre a escrever, não está?

Sim. Quando não estou, começo a sentir-me incómoda e intratável. Quando começo a perguntar-me o que é que afinal estou aqui a fazer, é altura de voltar a escrever.

Costuma escrever à mão?

Sempre, sempre, como vê. Só que agora já não é passado em casa, é na editora. Dantes era no escritório do meu marido.

Constou-me que era passado a partir dos vários papelinhos que ia escrevendo por todo o lado. É verdade?

Não. É curioso como, às vezes, põem a correr certas lendas que não têm a ver com a realidade.

Revê muito os textos depois de escritos?

Não. É uma qualidade, na medida em que saem mais espontâneos, mas também é um defeito, na medida em que podiam sair mais perfeitos.

Falta-lhe paciência?

Muito. Até sou uma pessoa bastante paciente, mas para rever textos não. Depois de serem passados, a primeira revisão é feita por um técnico e a segunda por mim, mas nunca me apetece. Depois tenho queixas de toda a parte, de os livros estarem cheios de gralhas. Sobretudo os mais antigos, que já levam muitas edições.

Quando está para sair o terceiro volume de crónicas, d'A Alegria do Mundo?

Isso está a ser tratado, mas não é por mim, é pela editora.


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