A TORRE

Acabei de visitar a Torre de Montaigne, onde ele possivelmente escreveu parte dos seus Ensaios, e pergunto a mim mesma o que vou fazer com isto. Isto é a torrente de sentimentos paralelos que se soltaram à beira dessa memória dum homem sagaz ao ponto de se encarcerar a si próprio. Não há maior arte para se desfrutar dos próprios pensamentos, sem ter de os confessar a ninguém. Porque o que se lança no convívio das pessoas acaba sempre por dizer demasiado sobre as culpas que são, afinal, o olhar ensanguentado do dragão que nos queima o palavroso tempo.

Tinha eu regressado dessa pequena excursão, em que andara nas avenidas de castanheiros confidentes de tão antigas datas, quando fui surpreendida pela morte dum famoso homem de letras, ultimamente entregue a uma quase obscuridade pessoal e que vinha veranear no Algarve, na encosta de Manta Rota, já lá vão uns anos. Era do tipo criminalista e recebia pouca gente, excluindo os editores da sua obra, que eram muitos e variados, sempre preocupados em arrancar-lhe mais um volume sofrivel de intriga policial, o que o deixava amargo dum sucesso fácil. Dizia-se que ele escrevia enquanto assobiava, o que era notoriamente uma calúnia. Eu lembro-me de o ver no alpendre da casa, construida por uma inglesa de quem ele fora amigo e não sei se amante durante a guerra e lhe contara inúmeras peripécias de fugitivos e enredos de embaixadas. Miss Brenda arrendava-lhe a casa de Julho a Setembro e ia para Londres reviver o passado deixando o seu amigo na vivenda colonial que ela amava e donde se via o mar em toda a sua grandeza, brilhando ao sol constante. Para miss Brenda, Manta Rota podia ser Nairobi a seus pés, e acho que era assim que ela via as coisas. Se um leão andasse em volta da casa de madrugada, cheirando água, ela não se espantava muito. Era alta e corajosa e, ao julgar por alguns retratos, fora muito bonita, do tipo clássico. Ela dava-se bem com toda a gente mas, praticamente, não gostava de ninguém. Lembro-me de miss Brenda dizer do escritor que ele nunca escreveria uma grande obra porque lhe faltava o humor.

— É um escritor policial e não sei se o humor ficava bem nos livros dele — disse eu timidamente.

— Joyce falou sobre isso. Que há qualquer coisa de desumano num autor que não tem senso de humor. Ora, o senhor Drake (e ela ria-se sempre que pronunciava este nome) não sabe o que isso é. Repare como o seu detective, protótipo da classe média, é completamente falto de brilho. Enquanto Sherlock Holmes, o que o salva é aquele jogo ambíguo com Watson, cheio de malícia e até de sentimentalidade. São amigos e são, sobretudo, pessoas atraídas uma pela outra no sentido mais insidioso. Aí o humor intervém para dissipar uma confissão comprometedora.

— Os romances de Drake estão carregados de erotismo. De pegas, pelo menos, estão. Não vejo que evite comprometer-se.

— Mas o espírito e a matéria não se acasalam; daí o humor não surgir.

Miss Brenda deixava-nos no meio da conversa mais interessante e ia tomar um banho de mar. Até aos oitenta anos conservou esse hábito e era boa em natação como o era no diálogo. Gostava da água, e creio que acreditava que Vénus nascera das ondas. O banho de mar era para ela um ritual. Dava um salto acima das vagas como se simulasse um nascimento.
O senhor Drake chegava às vezes mais cedo e Miss Brenda não lhe perdoava. Chegar com anticipação era como comparecer atrazado; ela dizia que era uma sinceridade viciosa, isso de fazer o que se quer.

— Poucas pessoas são dotadas para a sinceridade. O senhor Drake não o é.

Verifiquei isso quando, mais tarde, já depois de atingir uma celebridade extraordinária, o escritor deu uma entrevista que teve grande repercussão. Estava velho, sofrera grandes desgostos, sendo o maior deles o suicídio da sua filha Carol; mas apresentava-se tranquilo como um gato bem alimentado, e fazia psicologia de sala de espera. Caía nas confissões íntimas com a platitude de quem recorda um horário de comboios. Sobretudo confissões obscenas.

Eu lembro-me de ter visto essa entrevista muito mais tarde, já depois de ele ter morrido, e ter ficado com a impressão de que ele falava demais exactamente para calar alguma coisa de grave. A necessidade de confissão inerente ao aparelho humano, tanto quanto ele é um aparelho psíquico, estava bem presente. O êxito de Bloom, de James Joyce, está nessa obscuridade de forças mudas que exigem momentos de libertação. Conta isso é inútil combater. Via-se que o senhor Drake estava seguro do seu método de tudo pôr em equação, tanto a sua vida privada como a vida literária, bem sucedida, de resto. Lembro-me de eu ter rido com satisfação quando o Drake justificou a fortuna que tinha como uma simples curiosidade e não uma forma de cobiça. Segundo Murray Rothbard, todos os homens nascem com direito à propriedade, e portanto todo o atentado à propriedade viola esse direito. Men Drake não lia Rothbard e falava sem grandes argumentos da sua fortuna. E sem humor.

Não sei como, ocorreu-me que um amigo de Montaigne, La Boétie, escrevera um Discurso sobre a servidão voluntária; definia nele o Estado como o poder tirânico duma minoria obdiente. E cada pessoa é um micro-estado na sua comunicação com o meio. Qual era a tirania de Drake, posto que há uma aspiração tirânica no escritor policial? E, sobretudo, que escondia ele, no meio das suas confições pouco menos do que escandalosas?

Voltei ao tempo em que o conheci no Algarve, e ele estava com a família, tendo uma filha ainda pequena. A mulher era uma morena de nariz comprido e ar autoritário. Quando se conheceram entregaram-se imediatamente a um amor violento e arrebatado, do género que Bette Davis interpretava no cinema. Bette Davis trazia à tela um odor de enxofre, tal como Joyce o descrevia como fazendo parte da face eterna dum país; o sentimento de que o mal existe e é indispensavel à espiritualidade, um complemento necessário à realidade profunda que se debate em nós. Drake dizia que não havia outra mulher no cinema como a Bette Davis. A maneira como ela tocava num homem, o olhar de luxúria sem a contemplação do pecado, eram coisas magníficas de se ver. A América deve-lhe um retrato mais afortunado do que a medida que ela exibe ao mundo, da sua exemplaridade moral.

Mas voltando a Drake e aos seus amores explosivos, não se sabe o que desencadeia tais estados críticos; talvez se dê de vez em quando, muito raramente, uma inflação erótica nas pessoas que foram, na infância, muito impressionadas pela experiência sensível, dos cheiros e das cores; e depois esqueceram tudo isso por efeito duma carreira voltada para o inteligível, como é, por exemplo, a carreira do criminalista. Mas um dia essa notificação da criança perante as sensações emerge do passado com uma força que rompe todos os conceitos; é o amor louco e o estado meio demencial da paixão. Isso deu-se entre Drake, já famoso, e Belle, que ele descreveu como uma gata de proporções gigantescas. Belle fora de facto uma gata que havia em casa da mãe de Drake e pela qual teve o primeiro entendimento do que é o cio e o parto, com todas as suas fases cruéis e de tenebrosa urgência.

Drake confessou que amara a mulher como se estivesse possesso e que ela lhe correspondeu da mesma maneira. Isto durou alguns anos e Carol ainda nasceu debaixo dessa exaltação, espécie de fanatismo carnal que, mais ou menos actuava em volta deles. Os amigos e as criadas sentiam-se presos a essa rede de incalculável paroxismo e facilitavam as coisas para que ela não se rompesse; quer dizer que, mesmo com o risco da sua dignidade e até da vida, pactuavam com tudo o que Drake exigia deles. Era o Estado tirânico em todo o seu poder.

Drake chegou uma vez a Manta Rota com a filha, e via-se que não queria ser incomodado. Parecia disposto a divorciar-se outra vez, e Carol não gostava de falar da própria mãe.

— É muito interesseira e orgulhosa. Só pensa em guardar a fortuna ao abrigo de surpresas. Está na Suiça e os nossos amigos são a família Chaplin. Gente bem educada, Oona sobretudo. Os velhotes apreciam mulheres assim. Onassis, e outros que tal.

Isto eram raros desabafos, Carol vivia despreocupada e passava horas estendida ao sol, com óculos escuros como viseira, o que lhe desenhava uma mascarilha mais clara. Tinha-se feito muito bonita, com a banalidade que os quinze anos admitem como uma forma mutante. Algo se espera dessa radiosa conspiração com a natureza, e a expectativa deixa-nos gratos e até felizes. Drake estava encantado com a filha e, naturalnente, educava-a muito mal. Dava-lhe respostas simples a perguntas que não o eram, e Carol estava em crer que o mundo era feito dessa mesma simplicidade. Não se queixava de não ter amigos da idade dela, e aquele pai que já cumprira sessenta anos parecia-lhe apropriado à sua vida opulenta de escuteira de luxo. Nesse tempo, comprou num ourives de Vila Real de Santo António uma grossa aliança de ouro que usava na mão esquerda, como uma mulher casada.

A vida nocturna de Manta Rota era pouco menos que sinistra, e havia hóspedes de miss Brenda (ela conservava alguns, dos seus hábitos de hotelaria artesanal) que se queixavam da falta de dancings ou danseterias, como hoje se diz. Excepto a visita dum casal de ingleses plantadores de morangos, os Drake não recebiam ninguém. Carol contentava-se com descer vertiginosamente a ladeira até à vila na sua Vespa amarela e ia tomar banho à praia. Dava dois mergulhos rápidos e, sem se secar, voltava para casa, que era fresca, ampla e traçada para nela se cruzarem correntes frescas, como nas casas de sobrado do Maranhão.

Ninguém se interessava aparentemente pela vida dos Drake, mas sabia-se o bastante para os acharem do tipo catastrófico. A senhora Lurdinha, uma doméstica fervorosa de limpezas, regas e apanha de conquilha, dizia que um dia havia uma desgraça.

— Não sei porquê, senhora Lurdinha. São gente como outra qualquer.

— Pode muito bem ser que eu esteja enganada. — Era discreta com os turistas, mas gostava de ditos e de contos. E também era de opiniões radicais. Como todas as pessoas voluntariosas, não gostava de discutir. Todas as manhãs subia à propriedade de Santa Rita para escovar os cadeirões forrados de chintz às flores, muito classe média, isso eram. Cada hortênsia que dava gosto vê-la, em tons azuis e que pareciam sempre mais húmidos e brilhantes! Encontrava Carol a passear pelo corredor, comendo talhadas de melancia com uma expressão canibalesca.

— Não sei porquê — disse Lurdinha — parece que se atira a um bocado de carne crua. Não gosto de ver aquilo e não gosto. — Ela repetia sempre as frases dominantes do seu discurso; era um estilo.

Sem o chaperon que era miss Brenda, eu não me atrevia a devassar a casa de Santa Rita. Drake estava lá a bater as teclas da sua máquina eléctrica e bebia entretanto golinhos de água gelada com genebra; não era como o seu detective que, onde quer que chegasse, pedia um fino e ali ficava, com ar de ter encontrado o lugar no seu estábalo, ruminando os factos como palha traçada.

Drake tinha alcançado a glória do pocket book e estava traduzido em muitas línguas. A mulher, uma acumuladora de profissão, comprava tudo o que podia valorizar-se; quadros, sobretudo. Mudavam de casa variadas vezes e sempre para lugares faustosos que não sabiam conservar em bom estado, em parte porque lhes aborrecia ter muitos criados. Quando abandonavam a moradia (tiveram inclusivamente um castelo na Sologne) ela ficava desmanchada como um ninho seco no seu galho. Tinham tanto dinheiro que o espírito de família se alterou. Os filhos saíram de casa, e Carol, a última vez que a vi, pretendia ser cantora de rock. Tentou o cinema, sem resultado. Tinha algum talento, mas o nome do pai absorvia-lhe a personalidade. Acho que isso a afectou e que começou a sofrer de perturbações mentais. Um dia apareceu morta na cama, tendo disparado um tiro no coração. Fora tão certeiro que o próprio Drake não acreditou que ela se tivesse matado; ou então tomara lições de anatomia e da maneira de usar armas, coisa que ela ignorava completamente.

Embora fosse um homem de sentimentos superficiais (e por isso mais um homem de acção do que um pensador), Drake sofreu muito com a morte de Carol. Deu por acabada a obra literária e passou a escrever as suas próprias memórias. Elas causaram surpresa e até escândalo. Embora ele se preocupasse em mostrar o seu personagem favorito como um homem experiente que frequentava os chamados lugares de perdição, nada transpirava nos seus livros de aberração ou indecência além do normal. Era mais um espectador do seu reino rufião e patibular, do que um visitante dos bas-fonds. Interessava-lhe a tensão dramática das situações vigiadas pela lei, mas o seu impostor, que era tanto homme de justice como ele era homme de plume, não passava dum medíocre obstinado, que é o que mais se parece com o anedótico. Cada crime a resolver era para Drake um caso de responsabilidade, de submissão a uma vontade superior em mira da sua obra. O drama estava em que Drake nada tinha a ver com a a mística. Confessava que, desde a primeira vez que possuiu uma mulher, perdeu a fé. Era uma estranha declaração, tanto ela descubria o sentimento do pecado que é extraido da mente como um tumor destinado a enquistar-se. Rejeitando a submissão, ei-lo preparado para ser uma figura dolorosa a quem o humor não podia valer, porque não o tinha.

A morte de Carol desarticulou o interesse documental da sua existência. Estava muito rico, casou outra vez com uma mulher prática e um pouco afectada na maneira de levar a sério aquele velho sem imaginação e completamente obsecado em ser sincero. As coisas que ele disse nas suas Memórias eram chocantes na sua maneira directa e humana, mas não tocavam nenhuma espécie de grandeza, nem sequer a grandeza da monstruosidade. Era um homem profundamente molestado por qualquer coisa que se assemelhava ao ridículo: queria que o levassem a sério, e isso parecia cada vez menos provável. Não era capaz de simbolizar a ideia que nele se debatia e que era o desejo de começar pelo princípio a sua vida. Afinal, as tendências policiais significavam um desejo de explicar o mistério da morte e do prazer.

Porque dissera ele que perdera a fé pela primeira vez que se deitou com uma mulher? O prazer dera-lhe uma decifração parcial da realidade e teve medo de se aventurar além disso. Frequentava prostitutas e jovens profissionais do strip-tease, na intenção de abordar nelas o enígma da libertação que é o desfecho dado pelo corpo que se entrega sem vergonha e sem condições. Achava-as bastante superiores às burguesas cultas do seu meio; mas elas esqueciam depressa as confições que lhe faziam e até se mostravam aborrecidas se ele insistia nessas conversas.

— Escreve os teus livros e faz o teu trabalho como nós fazemos o nosso — diziam. Mas a celebridade de Drake operou milagres, e elas passaram a mentir-lhe de maneira afectuosa, como se faz com alguém que vai morrer ou que é doido.

Como miss Brenda se retirou do Algarve e ela era o único contacto que eu tinha com respeito a Drake e a família, só raramente eu sabia notícias. A morte de Carol ocupara muito pouco a atenção do público e serviu apenas como exemplo de como são falíveis as glórias deste mundo, o que não era novidade nenhuma. Também, com tantos livros escritos e públicados, não se dava conta do lutuoso silêncio do velho Drake e do seu inspector, um homem meio apagado e que acreditava na profissão que tinha. A fortuna de Drake crescia e a mulher dele tratava-o como se ele fosse o próprio Tales de Mileto; em suma, um dos sete sábios da Grécia. O suicídio de Carol ficou bem demonstrado, mas o pai não queria acreditar nele. Eu lembrei-me duma vez, na Casa de Santa Rita, em que Carol disse:

— Um crime perfeito só pode ser um suicídio. O resto são imitações.

— Queres dizer — disse Drake, pousando o cachimbo na mesa de azulejo verde — que quando se mata alguém exprimimos a vontade de nos matar a nós próprios?

— Isso mesmo. Espanta-me como às vezes és inteligente. És mais inteligente do que dizem, mas não queres entrar senão em detalhes. Por isso escreves esses livros, todos cheios de gente exibicionista e um bocado porca.

— Sei que não gostas deles.

— Não é não gostar. É que não servem para nada, a não ser fazer-me participar na lista dos milionários.

Carol tornara-se uma mulher muito bonita no género debutante da alta burguesia, mas não se lhe conheciam amores. Isso de estar apaixonada pelo pai era uma história tão estafada que ninguém já se atrevia a sugerir tal coisa. — „É uma rapariga séria, há pessoas assim” — diziam.

A avó dela comia ainda na cozinha e não aceitava dinheiro do filho. Mulher ignorante e acanhada de espírito, gostava de ir em peregrinação aos lugares das aparições. Drake não comentava o procedimento da mãe. Achava-a intolerante, mas com algum sentido atrofiado da realidade.

Mas o que era a realidade para Drake? As prostitutas de Anvers com colares de jade fingido e que ele pagava sempre com a sensação de gastar mal o seu dinheiro? Sobretudo evitava pagar depois de consumar os amores com elas. Não queria pensar na razão por que agia assim.

Só quando as Memórias apareceram é que toda a gente ficou a saber da sua obsessão pelas mulheres. Ele disse que possuira mais de duas mil, o que era pôr em causa os outros homens. Mas Drake não se ficou por aí; contou tão abertamente as suas tendências que os psiquiatras começaram a tomá-lo como um modelo de „indiscrição celular“. O desejo de confessar era nele tão evidente que chegava a parecer falso. Mas, de facto, ele queria confessar qualquer coisa que o apavorava; ficava-se por aquelas gabarolices de garotoporque sabia que eram perdoáveis. O que não era perdoável então?

As Memórias eram como uma torre. Ocorreu-me que podiam significar o mesmo que a Torre de Montaigne significava para ele: um refrigério ao seu tédio. „Je vis du jour à la journée; et, parlant en révérence, ne vis que pour moi: mes desseins se terminent là”.

Isto era o pensamento de Montaigne quando se retirou da servidão da Corte, e pode-se dizer que é o pensamento de quem anda em bom casamento com a liberdade. Quando Drake começou as suas Memórias, dando por terminado o encargo do inspector Lunard, e riscando do passaporte a profissão de escritor, os seus desejos estavam terminados. Mas restava um ponto fraco nessa retirada definitiva, e isso faltava-lhe explicar. Não o fez — porquê? Não se entregara nunca a vãs imaginações e os seus romances são construídos numa certa aplicação de quem constrói uma torre, com frestas e janelas mas que não o deixam ver alguma coisa para fora; só a flecha dum catavento de ferro, no canto esquerdo doutra torre, a das mulheres.

Quando apareceu morta, Carol vestia uma simples roupa de ténis, branca, e estava deitada na cama como se descansasse antes duma jogada. A governanta disse que ela estava tão natural como se dormisse e que só foi a insistência do pai para a acordar que a levou a descobrir a morte já ocorrida há mais de duas horas. Drake deu-se a um desgosto tão profundo que recearam pela vida dele. Mudou mais uma vez de casa e passou a viver como um frade, retirando das paredes todos os quadros e mobilando o quarto e a sala que lhe servia de escritório com trastes vulgares, apenas confortáveis. A dedicada terceira esposa compreendeu que estava a braços com um caso perdido. Não lhe falou mais de Carol.

Uma vez deparei com miss Brenda em Lisboa e admirei-me de que ela ainda tivesse forças para viajar. Era incorrigivel nesse aspecto, como o fora noutros, e todos os amigos dela esperavam que ela morresse na estação Victória, agarraga à sua mala de mão que continha quatro pares de óculos e um maço de cigarros. Falou-me de Drake e pôs a hipótese de ele ter matado a filha.

— Por acidente, mas um acidente preparado.

Carol contou-me como julgava que as coisas se tivessem passado.

— Carol era uma viborazinha maravilhosa.

Miss Brenda bateu com força no joelho, o que era uma atitude antiquada, de velhos negociantes de taberna. Era no Ministério dos Estrangeiros que eu a encontrara.

— Não há nada como quem ama para inventar máquinas de guerra.

Eu estava abismada, e perguntei-lhe:

— Carol? Tem a certeza? Não foi um suicídio?

— Foi um suicídio, mas ela levou o pai a disparar.

— Para quê?

— Ela queria convencê-lo a praticar o crime perfeito. Algo que não se pudesse confessar. Coitado do homem, eu lembro-me às vezes dele e não sei se deva falar-lhe nisso. Mas não. Não era acertado. Cada um tem o direito ao seu inferno. Ele que esperava? „As más companhias perdem os melhores homens”. Com as mulheres parece que se dá o contrário.

— Mas Carol? Carol?

— „Um coração que sofre é perigoso”. Já agora digo isto, também de Euripides. Tive tempo de o recordar durante o blitz, que a escuridão pede destes expedientes. Carol disse-me o que contava fazer. Pediu ao pai que manejasse o revolver e pôs-se na linha de mira. Fingiu que não acreditava que ele soubesse alguma coisa de armas. Ele ia verificar se estava carregado ou não. Carol já contava com isso; trocou-o por outro igual, mas este cheio de balas.

— Porque é que ele não confessou?

— Por vaidade, porque havia de ser? Punha em causa toda a responsabilidade do inspector. Ia parecer um idiota. Com outro qualquer tratava-se duma desgraça; com ele era um fracasso completo.

— Mesmo assim...

— Não vê como o êxito o encheu de algodão e de serrim? Não tinha tripas nem órgãos vitais. O éxito é o pior dos fracassos.

— Ele amava Carol. E ela amava-o também.

— E então? Amor, quantos crimes se cometem em teu nome! Perdoe a banalidade. Começo a achar que ela não nos decepciona tanto como o génio.

Miss Brenda levantou-se querendo parecer ainda ágil e resistente: Mas via-se que os velhos ossos rangiam e protestavam. Vendera a propriedade de Santa Rita, e uma parte do dinheiro empregara-o para favorecer cavalos reformados e que acabavam os seus dias a pastar lentamente, poupados a ser comida enlatada para cães.

Drake morreu na sua casa de Lausanne, rico e considerado. Mandou deitar as cinzas no jardim, o que era procedimento romântico e muito bem visto. E sem humor, como tudo o que fazia.

Agora dirão porque me ocupo com estas coisas e ponho estrangeiros como herois das minhas histórias. É um truque muito antigo, as pessoas ficam sempre impressionadas quando tudo se passa lá fora e aparece em cena gente doutros costumes e doutras terras. É assim, não há nada a fazer. Foi tempo em que o Samorim era visita da casa; agora até uma porteira de Passy nos deixa intimidados. Mas até Shakespeare gostava de presumir. Finalmente falei de Shakespeare; e ficamos entendidos de que isto é grande literatura.

Porto, 13 de Outubro de 1989
Agustina Bessa-Luís
©



 

Nota final do editor:

O Drake desta novela é obviamente um aliás de George Simenon, o pai de Maigret. Mas pelo certo também uma reflecção sobre o papel da escritora e da sua própria vaidade, um exemplo escolar de eminente má-língua e sentido de humor. Quando se escreve sobre acontecimentos da nossa própria vida deve-se, por cortesia, nunca dizer a verdade, mas guardá-la para nós mesmos e deixar apenas que se espelhe em diferentes ângulos, uma citação de Soeren Kierkegaard na peça de teatro que Agustina escreveu sobre o filósofo dinamarquês,
Os Estados Eróticos Imediatos de Soren Kierkegaard
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Til forsiden